
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009
Ante o mar azulado, na cadeira de praia, ela dormindo sonha com o príncipe da neblina que se aproxima de sua orelha esquece ali música verdejante. Certa mulher, mas não esta ou aquela, porque me refiro à que vive na ilha do Arvoredo – nas noites perigosas – é música atravessando o muro.
A escrita incita o linho.
A poesia é quando estamos andando sobre o dorso de peixes dourados e alguém nos entrega um livro justo na página 61 onde está escrito que não há palavra de adeus para os flocos de neve que se fundem à brancura do campo.
As ervas do jardim. A voz rasga o céu, a raga indiana rega as ervas do jardim – pairo acima de salsos pendentes.
claro, é isso que eu desejo.
Uma prática pálida,
três versos de gelo.
Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não. Nenhuma.
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?).
Sim, inverno, estamos vivos.
Paulo Leminski (1940-1989).
1.http://www.youtube.com/watch?v=V3dIyOMysCk
2.http://www.youtube.com/watch?v=NDHPTvADJ9s&feature=related
Jean Cocteau (1889-1963).
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
A serenidade de um verso latino escrito num vaso raro ou no quadrado vivo de um quinteto de Brahms que, já nos primeiros acordes, esboça um quarto
O segundo encontro: visita à Casa de Água de Lucana. Estirando-se num fluxo e refluxo de ondas, o mar – sultão lascivo – respinga nas plantas, pedras e silêncios de Villa da Concha. Casa de Água --- vagarosa, protegida com vasos de terracota; anjos enfiam-se pelas frinchas. A varanda em duas águas, com telha cerâmica, apóia-se sobre as cimalhas com finalizações
Cavaquinho
Ostras no bafo vagens brotos verdes
água no copo
água tônica de quinino
cavaquinho no sereno
a voz rouca do gramofone na sala de jantar:
repuxo a brasa para minha sardinha
ostras no prato
rosas e murtas no jardim da Casa de Água
evohé Bakkhus moeda de ouro
faisões des vers antiques
um xote para violoncelo e galinha caipira
sala de jantar domingueira
papagaio na gaiola
dessacralização da ode
As salsas ondas do mar cicatrizam feridas fundas. Águas de vento, aroma de canícula. E, no maralto dessangrado, algumas ondas de fina renda, angras corroídas pelas ondas. Às vezes, à meia-noite, nem secas nem molhadas as salsas ondas do mar, nelas flutuando – água viva – o torso de Lucana que guarda em si, não o cântico da sereia, mas o que, segundo Kafka, é – dela – o mais terrível segredo: o silêncio. Pudesse eu reter o teu fluir, ó ondas espessas de halo salino, e minha mente atenderia mais a harmonia oculta que a harmonia visível; eu, K., que sempre havia precisado, para escrever, de Vazio e de belos relâmpagos. Nem que seja na imaginação, para escrever eu preciso me sentir num dos cômodos do Taj Mahal. Lucana esparze óleo de Santo Ignácio sobre o salso elemento: um sono na barca transparente – as algas, os corais. Junto aos ramos de uma oliveira tardia, ela preferiria luz de canoa verde, mas o deus Orum quis que ela fosse um sono na barca transparente. Lá fora chove torrencialmente e o rádio dá a notícia que barcas naufragaram e o mar revolto lanha as costas rochosas e as areias. Lucana: uma leoa na neve --- suas cravas se agudizam. Preferiria uma cachoeira na alma, mas a deusa Kalami sentencia: vai ser leoa, neve. Amanhã ela vai ao cabeleireiro, ao Mercado Municipal e ao Cemitério. Lucana silente no tronco de amarga oliveira. Lucana inteira: dama-do-lago, açucena, o golfo-da-flor-branca. Compra uns livros raros no sebo. Confere o dinheiro e só tem duas moedas de ouro. No teu corpo, Lucana, tu me pertences, sete anos de brisa no cativeiro. Foste da mesma matéria do ópio que sorvi no cais à espera da barca. Acerco-me de ti, ó música de loucos, para queimar o pulmão nos astros. O silêncio – escuto-o de olhos fechados – conduz aos espinhos e bálsamos. Na verdade, o pomar de laranjeiras só existe nos sonhos do pássaro, que aguça o tímpano e recorda que no teu corpo, Lucana – apinhado de estrelas – a voz sem voz habita no Jardim da Sacerdotisa, que à noite venta, de manhã é luz.
A iguana em meio ao juncal é bom, o salmo 69 não é mau. Sem ser da mesma linhagem que a do salmo, aquela em Villa da Concha, segundo me confidenciam, é Lucana na Casa de Água. Ela vai grafando linhas vazias no dorso escamoso da iguana. Ela --- água de chafariz --- que cai aquática e ressuscita aquática. Folheia o missal das pedras, e particularmente a brisa. Possui a técnica de o fazer, do missal das pedras, uma gravura de fino cristal. Lucana retorna à Casa de Água onde reside, entre azulejos da parede, arcas-de-ferro e mandacarus do sertão. Ela e o suntuoso vendaval. Uma neblina se dissipa. A partir de um átrio aberto, espia-se a monotonia da Casa de Água. Jorra o cântaro a gramática líqüida ou o fluxo solar da indecisão aquática. O peixe principia a feder pela cabeça. Casa de Água principia a clarear pelas telhas. Se o peixe é de pedra nunca fede. A partir de um átrio aberto, erra a epifania, não em lavanda, mas em cacto ou apenas arabesco de cacto. Logo na entrada se vislumbra o crânio de uma vaca com rosas da caatinga e um árido chão. Lucana abana moscas, vocifera claros nomes serenos. Simplificada a Casa de Água até o rigor franciscano de uma gravura de Balthus, e onde por único adorno, além de tomos de Xenofonte numa estante de cedro, há cactáceas em púcaros de barro. A um recanto do living Lucana, a ler duas folhas de prosa, aproxima da talha das abluções o lado amargo da língua, depois vai regar o silêncio do Jardim de Pedra, vai regar o jasmineiro, o corvo, o biombo de fino papel japonês, a âncora. Com o viscoso lodo das palavras, com o granizo e com a nevasca das impressões verbais, desvela-se a seqüência harmônica da Casa de Água de Lucana, casa que é um sonho onde não se dorme, sonho vivo, fora do sono, entrelaçado silêncio de cacto e sopro. Jardim de Pedra que a raga indiana rega, também cheira a Vazio e viço de alecrim. Tudo está em chamas: a retina, a coróide, a alta árvore na audição de Orfeu. Tudo em chamas: aquele ponto, no leito dos rios, onde remansam as águas; o cesto feito de taquara; o vinho negro e forte; o sentimento que nasce do contato com episódios gratuitos – seja a dor, seja a alegria – tudo