
Macária é bela quando o sono apaga –
da página de seu cérebro – o que nela insiste em escrever o canino da iguana e
o fel dos dias.
De todas as nudezes, a mais leve é a de
Macária, que anda pelas tábuas do cais do porto de Cós, e respira fracassada,
tendo na cara – carcomida pela maresia – uns olhos frios como os frios olhos
dos bagres no Mercado dos Peixes. Comparo Macária às conchas molhadas pelos
murmúrios de uma cambada de enguias: também a comparo à chuva que cai, à planta
que cresce, ao mar que finge ser um relvado com uma senhora de chapéu branco
chorando ao vento.
Por falar no
vento, eu moro com ele – num casarão avarandado próximo ao porto – e acabei de
fazer uma pequena barca. Nessa estação balneária grega de Cós, as casas têm
alicerces leves para serem sopradas do lugar por uma lufada de vendaval. As
casas de Cós – corroídas pelo salitre que vaza do mar – parecem cravadas num
marasmo interminável.
Por toda a
parte, nesse lugarejo, há marinheiros entorpecidos pelo álcool e pela cannabis,
corpos flácidos de mulheres com olheiras e buços, velhos que seguram a cabeça
oca para não cair e velhas que rezam o terço no rosário de pretas camáldulas.
Acabo de adquirir
certo búzio num desses quiosques que beiram o porto grego de Cós – búzio – que,
a partir de agora, nada mais é que esse elemento do real que vai tecer os
arpões de uma narrativa. Sim, arpões, posto que cada palavra é um arpão que se
crava no objeto e o arranca do nada.
Deitado em catre
de ferro, numa das camas do casarão avarandado, recordo o banho de chuveiro com
Macária: o que havia ali sob a ducha era uma ninfa dos bosques sedenta que eu a
lambesse da clavícula ao mel do púbis.
Sei que todo
corpo é calabouço para o ar: ar que nenhuma grade aprisiona. Daí que o ar contém
em si o excesso de não ser e dá origem às ideias e ao pensamento imaterial.
O ar une e o
pensamento separa.
O prato de
ervilhas, a pétala da chuva, tudo comove à sombra que sou. O cansaço de ser
frágil que nem uma jarra de porcelana me exaspera até o limite. As venezianas,
no casarão avarandado em que vivo, escurecem o sol.
Na cama, em dias de tempestade, eis a que a
minha sombra sonha um campo de neve e se indaga: “Como um padrão neural se
torna uma estação balneária grega chamada Cós no cérebro é uma questão que a
neurobiologia ainda não elucidou”.
Um de meus defeitos é fingir que sou o
escritor russo Tchekov. É aos domingos que, ao fingir que sou ele, abandono
ramos de chuva num dos quartos da casa.
Os ventos altos acontecem atrás da casa, e,
atrás da pele transparente dos ventos altos se vê uma ponte de pedra, depois se
vê os carvalhos e o céu – que não pertencem a ninguém – contudo uma palavra de
chuva faz com que eu me liberte para sempre das lavas vulcânicas do Inferno.
De solitude careço, e, nas estreitas horas,
tento fisgar as belas palavras do mar – hipocampo, sargaço, calmaria – depois
solto à frente de mim uma ideia ligeira que se enfia no carrascal brenhento,
ali onde respira o demônio, que não existe real porque o Deus é o ar que o
demônio respira: o ar que, ao cair no abismo, cai tocando piano.
Se eu, falso
Tchekov, fechar os olhos e imaginar que, no claustro românico do Hotel das
Termas, sou um dos ventos altos que não dormem, as mesmas áreas de meu cérebro
se ativarão, como se estivessem vendo o claustro românico no hotel das Termas,
onde sou um dos ventos altos que não dormem. A verdade é que meu cérebro não
sabe a diferença entre o que vê no ambiente e o que se lembra, pois os mesmos
neurônios são ativados.
Não com
Schopenhauer, mas com o pensamento de Schopenhauer, é que me distraio nessa
estação balneária grega de Cós. Não Píndaro de carne e osso, mas a Ode 13, de
Píndaro, é que é vizinha de muro colado de minha memória.
Não é ao
significante que se deve escutar, mas à vida, ao afeto, que já traz consigo sua
plêiade signifcante. Numa penumbra de aquário, com as pálpebras baixadas rente
às escotilhas dos olhos, escuto a partitura do silêncio e concluo que é a
partir de um lugar vazio do sujeito que a voz exerce sua função como objeto
não-substancial: esse objeto sem substância, que encarna “tudo o que não se
pode dizer”, é a voz como tal; a voz que, por não pertencer ao registro sonoro,
não é nem palavra, nem entonação, o que permite que um ruído (o som) possa se
fazer olhar.
Mudo de assunto e
penso na palavra rizanto: rizanto que é uma planta cujas flores ou pedúnculos
nascem da raiz.