
Alinari, 1855
Leaning Tower, Pisa
Escutar Fernando Pessoa
na voz de Paulo Autran
http://www.youtube.com/watch?v=6mLyfWAw9Tc&feature=relatedVolto ao ancoradouro de Vila da Pedra, meu caro Franz, para fumar apenas um cigarro. É que eu trabalhei a madrugada inteira nas minhas Confissões orgíacas e agora bateu um certo cansaço. O ar muito seco, muito azul, talvez me serene. Ontem fui à Tabacaria do Esteves, onde também se vende absinto, e avistei a divina Elisa, do outro lado da rua, com pluma branca no chapéu. La lengua del alma es la pluma, deixou escrito Cervantes. Eu só podia ver que ela entrava numa pensão sórdida. E olha que há vinte dias encontrei na minha caixa de Correio a notícia curta de que ela iria se casar. Com quem, meu amigo? Com o conhecido proprietário da Tabacaria, o Esteves, que ainda sorri. Então casou com o Esteves? Quis dizer a ele que sua esposa o estava traindo, mas decidi ficar quieto.
A divina Elisa acaba de sair da pensão sórdida, atravessa a rua em direção à Tabacaria, e, agora sei: ela é, nas horas vagas, prostituta. Unicamente por não poder, com minha costumeira honestidade, contar ao Esteves o que vi, preferi fingir que fumava um Continental e perguntei a ele como era estar casado. O Esteves me respondeu que Elisa é uma espanhola que conhecera em Málaga, numa Semana Santa. O ex-marido dela, pacato consumidor de queijo, sofria de um terrível mal: nasciam-lhe lesmas na língua; lesmas não confiáveis. Ora uma das lesmas caiu no chá de Elisa e isso foi o suficiente para que as núpcias fossem desfeitas. Ela amara o ex-marido na cama de linho, atrás da igreja dos Lavados, o amara à beira do rio, no banheiro da estação de trem, e só por causa das lesmas decidiu vir para cá, à Vila da Pedra, e nos conhecemos ali no ancoradouro onde agora, em estado de óbvia distração, eu contemplo as nuvens.
Compreendo o romance e o motivo, só não entendo porque Elisa trái o Esteves nessa pensão barata. Depois de jogar o charuto no cinzeiro, aquela imagem dela entrando naquele lugar imundo ainda apertava na minha cabeça. Vociferei:
– Mas por quê? Por quê?
– Talvez por tédio.
Vi o silêncio, quis guardar no espelho. A eternidade quebrou o espelho, não o silêncio. Este durava no vento luminoso da noite, na concha azulada. Retido no espelho, o silêncio e o miosótis. Vaso de porcelana à nossa porta, música alada à branca superfície da luz que do vaso emana. Porcelana é luz material que vem à tona e adquire a serenidade de um piano de Chopin na noite que mistura o azinhavre de nossa fala, sagrada por circunstância, à pureza salina de uma estrela que, vista de perfil, é toda a nossa infância. Romper a cabaça com pedra de violoncelo. Verter o líquido de copioso cristal no deserto a queimar a alma. Pedra com que Bach fez ablução no século 17. Bach lançou a pedra na cabaça e viu o líquido escorrer pela alma até extinguir-se a dor – a que nos devora sem piedade. E o sonho, astúcia da vigília, é noite suave e afunda no líquido que verte da cabaça esburacada. O líquido não anula o fogo, antes cria liames, pois a função da música, segundo a Lei da Harmonia das Esferas, é unir água e fogo, e conferir levezas distraídas ao deserto. Dá para o quintal de vento e de monturos a respiração de Deus, mais conhecido como “o mais frágil de todos”. Deus, nu, sobe no mamoeiro enlaçado à nuvem. – Confundiram tudo – diz Deus, e do rio de seu coração entre neblinas fogem acordes de violas à beira do abismo, onde o ar torna-se mais leve com a passagem da música. Deus iça a pandorga e o fio que a iça está encordoado de arco-íris sob a chuva. O vento no quintal é a ressurreição. Deus, quando vem o vento, ilumina-se com as partículas cristalinas que o sol espalha no coração da bolha de sabão – coração de Deus. Meu único triunfo é a concisão. Consistência do jardim de miosótis. Imerso no vento o capinzal ondula contra o azul noturno da escarpa. A leveza do vento espreita Sirius. Olhos: pérolas duras em poços escuros. O silêncio minimalista da pérola. A lonjura que há no que é azulado. À sombra o diamante te aguarda, sofrido de quantas senhas esqueceste. O que é verdade? Escutar maré de estrelas, desistir da farsa, vocábulos, pavores e, nas noites, soprar o carvão, sabendo que nele o escuro é musical.