Nasci em Joinville/SC no ano de 1961. Sou autor, entre outros livros, de "Casa de água" (Poesia), "O livro perdido de Baroque Marina" (Romance) e "Senhora do gelo" (Novela).
Vasos de barro, onde cisne e música somem. Se olham --- cisne, vasos de barro, música --- imersos na voz, aderidos ao corpo que logo finda neles --- os dourados,
com música transbordando de vasos de barro moldados pelo sopro do cisne que os dias desdouram, como se a mais alta sina fosse perder vasos de barro, música, voz.
Os dourados somos todos, esquecidos do corpo que, antes das constelações, silenciava uma prímula, um grão
de lua na altura do peito, na altura do peito dois vasos, não de barro, de seda fina do arrozal, dois pulmões, dois cisnes:
Cavaleiros negros, cavaleiros negros com sóis tatuados no peito, cavaleiros negros cortam a cabeça da banhista de Valpinçon, arremessam ao ar.
Cabelos e olhos entre nuvens.
Cavaleiros negros batucam o tambor, que já não pode ser ouvido pela cabeça arremessada ao ar, alta, entre nuvens, --- rememorando ancestrais --- uma cabeça no azul gelado.
Esculpido na água viva da constelação --- durante o século I dos linces --- eu, Juliá, moro teu azul de oásis, oásis com cadáveres obcecantes.
Moro teu azul de oásis --- dolorido, com esperas soçobradas --- um corpo, um ancoradouro de aparições que são ventanias, depois trevas,
porque foi sempre assim a loucura: estarmos aqui de improviso, as frontes apenas aparentes, lágrimas
acendidas sob a máscara, nossa febre suave e uma palmeira --- alta como a ressurreição --- inclinada simples e musical na noite clara.
Não há verdade senão a do desejo. O inconsciente deriva do que é puramente lógico, em outros termos, do significante. Nos curamos ao ouvir, no significante, pulsão de vida.
Se ali o céu, acúmulo de ar, ourografia nebulosa, água corrente o céu --- via régia --- linguaviagem em direção ao sabre lúcido, à prosa da piscina vista do belvedere.
Ouçamos, pois, como soa o céu: sem anular o sonho, antes o vivifica. Se o céu parece comum, é porque não o vimos ainda.
Despojar a palavra da palavra, confessá-la em música. O céu passou, mas o rastro do céu,
fixo nesta matéria fina de toda certeza --- a palavra --- permanece ao alcance do sopro
GODOT CHEGOU AO HOTEL SUNSET BOULEVARD E NÃO ENCONTROU NINGUÉM
Vim a este Hotel Sunset Boulevard, rente ao mar grosso de sal e azul, porque me contaram que aqui estavam me esperando Schopenhauer e Francisca B. Não os encontrei. Não faz mal. Ficarei espiando o mar tranqüilo assim e o visível corpo n’água.
Mar em que nos abandonamos e que cresce em nós com as tormentas, continuará a ser água salgada em desalinho constante e os limites deste mar, fixados em alguma idéia, se confundem com a altura do céu que é claro sem nunca ter pensado: este céu é suficientemente despovoado de anjos e beatas virgens, de tal modo que resta sempre novo céu que podemos exaurir e dele arrancarmos as finas cordas da chuva, as chuvas de que é capaz o espírito.
E acontece que, para o espírito, as nossas presentes chuvas, sem consideração moral, são mais molhadas. Aquele que construiu em si a obrigação de molhar os dedos na pia de água benta, sabe que nunca deixará de faltar matéria e realidade à água benta e só terá necessidade de recorrer a ela se, vazio, e para iludir o escuro em si mesmo, tocar a suposta santidade da água que, ali na pia, é água apenas, e isso é tudo para essa água que, sem pia nem beatitude, continua ali e logo evapora. Mas chega de filosofia.
Não vou esperar mais. Daqui posso ver a Tabacaria. Talvez o Esteves saiba onde Schopenhauer — o peixe espinho — e Francisca B. estejam.
Anônimo
A DEFORMAÇÃO ORGANIZADA DA LÍNGUA COMUM PELA LÍNGUA POÉTICA
Um riacho de serpentes no cérebro, um vaso de porcelana com verbenas. O estranhamento se há cascalho: aqui as palavras têm plantas.
Fisgo do cristal o inaudível, alago a música da mente e, à sombra do salmão ciumento, me recolho. Imagino que sou neblina de Issa,
neblina vivificante, isca sou de instrumentos arcaicos que crescem em plantações protegidas por cercas de bambu:
DAR BANHO NA MOSCA (Oito milhões são as divindades do Shinto, o mais leve dos cultos)
Por que não perfumar a mosca com incenso de musgo? Esse frescor de água na garganta nunca foi para a mosca. Escuta: a mosca quer adágio d'água e ventilador nas noites areentas. Mosca rajada pelo Shinto. No pátio espanhol compartilhamos --- eu e a mosca --- aragens, jardins, terraços. Fonte oca de alaúde, a mosca no mar de ondas.
A edição 10 de Pobres & Nojentas chega na próxima semana, com destaque para a entrevista com a escritora Hilda Hilst, feita pelo jornalista e poeta Fernando Karl em 2002. Linda Hilst... Foto em destaque de Fernando Lemos, feita em 1957 e extraída da página http://www.cosmo.com.br/galeria/hilda/
As fotos selecionadas na mostra da página acima pertencem à Coleção Hilda Hilst, adquirida em setembro de 1995 pelo Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio (Cedae), da Unicamp.
Aguardem P&N 10!
segunda-feira, 17 de dezembro de 2007
Estou lendo, nesse exato instante, aqui em Marduk, um poema de Hildegard von Bingen (1098 a 1179), que gostaria de compartilhar com vocês:
Porque a mulher criou a morte, uma virgem clara a dissolveu; por isso a bênção suprema vem na forma feminina, além de todo criado: o mesmo Deus se fez homem na virgem doce e beata.
A rosa e a imagem da rosa. A rosa está ausente no próprio núcleo de sua presença. Uma imagem não se aprende. Sem imagem, rosa precária? No escuro, rosa é rosa? Rosa, não posso explicar, mas imagino. Não posso atingir a causa do fenômeno, então a crio. Olhar de dentro as partículas sonoras das vigas sob ar e aura. Os barcos saíam a sete mares, com sete marés pelos velames. Soa o martelo na antiga linha do vento que o construtor imagina. Os barcos saíam a buscar brisas que nenhum Deus imaginaria. Quem lima a âncora sabe a dor do ferro. Quem lixa o pó esquece a relva. Brutas marteladas, os barcos se erguem embalados pela onda futura. Talvez porque os barcos acordem cegos, necessitem de marujos que os velem nas longas noites das ribeiras. Tocar o vaso de Bizâncio vivo, mesmo a sombra na parede branca, bem como o sopro que o escultor Guyau Ouspenski esqueceu na superfície de louça azul do vaso de Bizâncio. O céu do Deus nos exilou – nós aqui – e para alcançá-lo só temos, talvez, alguns grãos de alaúde e Saaras de palavras: vaso, sopro, louça. As coisas tentam ser o que em Deus é e desistem. As coisas desistem de ser: homem, Órion, ventania. Deus, mais linho que o linho, desnuda-se da ilusão, esculpe além da pedra ode serena para Gregorovius. Eram cegos, rememoravam dinastias de vozes. Cegos a quase tudo, só viam jarro com azevém. Não viam ímãs aquáticos de Sirius nem o gongo virginal que soprava fogo azul no gelo dos olhos que, nublados, apenas enxergavam tudo o que, no jarro com azevém, jarro com azevém que alava-se no céu encordoado a nuvens. Apenas o sabor da sede os consumia. Por isto, aos acordes da viola de Gamba, entrelaçaram-se, às cinco em ponto da tarde, na piscina natural da sauna turca. Ninguém estava ali para coroá-los. De presente receberam o jarro com azevém. Atirei pedra no sopro, que fez da pedra uma ode. Menos palavras, mais sopros, porque o invisível é simples amor coberto de flores na curva do vento. Palavras são visíveis, com elas posso ler o que passa por dentro e por fora do jardim suspenso. Prefiro palavras a sopros, porque de sopros o poço é cheio, e não haveria sopros e poço sem palavras. Estou na cabina da barca que balouça menos. Tuas asas, bem-amada, lentas espirais que enraízam em ventos florais. Estou na cabina da barca orlada de espumas. Gaivotas e sol alto imersos no silêncio, porque de sol e silêncio é tua substância que respira o manancial de brisas vivas. Carregas teus primórdios na barca branca, em cuja proa desvendo tua voz com sede da tranqüilidade que vela o ancoradouro. Súbito um peixe azul salta das águas, traz na guelra o teu segredo, bem-amada, que diz que no sonho, antes de ser pássaro, és o espírito voador – cintilas a sílfide. Eu penso peixe branco rendado com flores peixe branco de Chuang Tzu Hai peixe branco idêntico a cada estado de meu pensamento. Foi bom para o peixe do sonho ser afligido pelas águas claras. O que é escrito na sombra do sol alumia a mente. O que é escrito nas águas sonha que é peixe.
Vi o silêncio, quis guardar no espelho. A eternidade quebrou o espelho, não o silêncio. Este durava no vento luminoso da noite, na concha azulada. Retido no espelho, o silêncio e o miosótis. Vaso de porcelana à nossa porta, música alada à branca superfície da luz que do vaso emana. Porcelana é luz material que vem à tona e adquire a serenidade de um piano de Chopin na noite que mistura o azinhavre de nossa fala, sagrada por circunstância, à pureza salina de uma estrela que, vista de perfil, é toda a nossa infância. Romper a cabaça com pedra de violoncelo. Verter o líquido de copioso cristal no deserto a queimar a alma. Pedra com que Bach fez ablução no século 17. Bach lançou a pedra na cabaça e viu o líquido escorrer pela alma até extinguir-se a dor – a que nos devora sem piedade. E o sonho, astúcia da vigília, é noite suave e afunda no líquido que verte da cabaça esburacada. O líquido não anula o fogo, antes cria liames, pois a função da música, segundo a Lei da Harmonia das Esferas, é unir água e fogo, e conferir levezas distraídas ao deserto. Dá para o quintal de vento e de monturos a respiração de Deus, mais conhecido como “o mais frágil de todos”. Deus, nu, sobe no mamoeiro enlaçado à nuvem. – Confundiram tudo – diz Deus, e do rio de seu coração entre neblinas fogem acordes de violas à beira do abismo, onde o ar torna-se mais leve com a passagem da música. Deus iça a pandorga e o fio que a iça está encordoado de arco-íris sob a chuva. O vento no quintal é a ressurreição. Deus, quando vem o vento, ilumina-se com as partículas cristalinas que o sol espalha no coração da bolha de sabão – coração de Deus. Meu único triunfo é a concisão. Consistência do jardim de miosótis. Imerso no vento o capinzal ondula contra o azul noturno da escarpa. A leveza do vento espreita Sirius. Olhos: pérolas duras em poços escuros. O silêncio minimalista da pérola. A lonjura que há no que é azulado. À sombra o diamante te aguarda, sofrido de quantas senhas esqueceste. O que é verdade? Escutar maré de estrelas, desistir da farsa, vocábulos, pavores e, nas noites, soprar o carvão, sabendo que nele o escuro é musical.