Walter
Benjamin, pela primeira vez sozinho no soturno casarão de seus
antepassados, não pode abandonar a barcaça ao vento nem esconder esse
corpo de mulher que furou à faca, nem urinar atrás da canoa, junto à
âncora de ferro, nem se esconder do rumor da vida alheia, mas pode olhar
a vida de frente e, ao se aproximar da vida, ela se transmuta em chuvas
nas tábuas da varanda do soturno casarão onde, nesse exato momento,
Walter Benjamin escreve suas Memórias de Leipzig.
Do
outro lado da ilha de Pedra, bem próximo do filósofo alemão, eu moro
numa pequena Casa de vidro; para Walter Benjamin, a suprema liberdade
era viver numa Casa de vidro. Certa vez grafou no caderno: “Silêncio,
quero passar onde ninguém passou, silêncio”.
O
corcunda só se corrige na cova, não cansam de dizer os escolásticos.
Eu, que moro numa pequena Casa de vidro, ouso vociferar: Ao inferno os
pensadores de sistemas lógicos! Não só se pavoneiam de ter feito
qualquer coisa, como também enlouquecem ao tentar explicar o vento, e se
incluem na idiotia universal quando insinuam que o céu foi criado por
eles.
Poderia
citar, aqui, o culto Voltaire, que escreveu: “Os homens não conseguem
fazer um verme, mas criam deuses às dúzias”. Claro que Voltaire pode
nunca ter dito isso e eu, vil, atribuí a ele a frase pronunciada. Mas
então eu seria mais arguto que Voltaire, posto que o dito é excelente.
Horas
depois, ainda na pequena Casa de vidro, tive um pensamento selvagem: o
de passar a língua na pele salgada das meninas virgens --- na pele da
nuca, na clavícula, nos quadris assustados, na sombra espessa do púbis.
Eu
sempre acreditei que eu próprio incitara Walter Benjamin a furar aquele
corpo de mulher com a faca, para o fim de aniquilá-la mais rápido, e
capturar o céu que aquele corpo esguio guardava num relicário qualquer
entre as vértebras, se é que realmente algum dia houve céu, corpo de
mulher, vértebras, mas a Casa de vidro existiu desde a primeira
respiração.
No
fim de uma semana, fui ao soturno casarão de Walter Benjamin. Percebi
de imediato que ele não havia conseguido abandonar a barcaça ao vento
nem esconder o corpo de mulher que furou à faca, mas ainda urinava atrás
da canoa, junto à âncora de ferro, e o rumor da vida alheia ele o tinha
sempre que lavava a xícara ou quando abria a geladeira em busca do
alface.
Walter
Benjamin não deu por minha presença. Eu retornei à Casa de vidro,
esqueci um disco na vitrola, fiz café e escrevi até que a chuva lavasse
os dejetos brancos das gaivotas no transparente telhado.
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