quarta-feira, 9 de abril de 2008
O AÇOUGUE DE WERTHER
A primeira vez que entrei naquele estabelecimento – mais conhecido como Açougue de Werther – percebi mesmo algo diferente. Eu solicitei 1 quilo de carne e ele olhou furtivamente para uma edificação logo em frente: o Orfanato das Meninas de Santa Teresa de Ávila.
Na calada do sereno, entre um gole e outro de conhaque, Werther afia faca de matar porco.
Duas horas da madrugada, Werther salta o muro do orfanato.
As meninas dormem, dormem profundamente.
A primeira vez que entrei naquele estabelecimento – mais conhecido como Açougue de Werther – percebi mesmo algo diferente. Eu solicitei 1 quilo de carne e ele olhou furtivamente para uma edificação logo em frente: o Orfanato das Meninas de Santa Teresa de Ávila.
Na calada do sereno, entre um gole e outro de conhaque, Werther afia faca de matar porco.
Duas horas da madrugada, Werther salta o muro do orfanato.
As meninas dormem, dormem profundamente.
A CARMELITA DESCALÇA E O COPO D'ÁGUA
Os antigos sentiram que a escrita tocava o invisível. Na realidade, a linguagem, ela própria invisível, mostra o que está fora da visão, nomeia o invisível. A escrita, que capta a linguagem, faz ver o invisível e se torna o lugar de encontro entre os vivos visíveis e os eternos invisíveis.
Herrenschmidt
Aos domingos aprecio ir ao Convento de São Lucas e aguardar, sozinho na nudez do locutório, que a voz misteriosa da carmelita descalça se anuncie do outro lado da cortina de organza escura. Amo essa conversa solitária com a mulher velada, pressinto os pés descalços dela no piso do convento, pés que eu beijaria, ombro que eu acariciaria, a língua na língua da carmelita descalça, a língua no musgo entre as coxas.
Acontece que, de repente, me intriga esse copo d’água, único adorno no locutório, mais que nunca esse copo d’água torna-se agora foco de minhas averiguações obsessivas. Não aprecio mais estar aqui no Convento de São Lucas – apenas o copo d’água me interessa – não desejo mais aguardar sozinho na nudez do locutório para conversar com a carmelita descalça – apenas o copo d’água me interessa.
Agora mereço um pequeno descanso e aproveito para filosofar:
– Quem sou eu, quem é esse copo d’água que entrou na minha vida? Porque ele tenta, de todas as maneiras, arruinar o amor que eu sinto pela carmelita descalça?
Os antigos sentiram que a escrita tocava o invisível. Na realidade, a linguagem, ela própria invisível, mostra o que está fora da visão, nomeia o invisível. A escrita, que capta a linguagem, faz ver o invisível e se torna o lugar de encontro entre os vivos visíveis e os eternos invisíveis.
Herrenschmidt
Aos domingos aprecio ir ao Convento de São Lucas e aguardar, sozinho na nudez do locutório, que a voz misteriosa da carmelita descalça se anuncie do outro lado da cortina de organza escura. Amo essa conversa solitária com a mulher velada, pressinto os pés descalços dela no piso do convento, pés que eu beijaria, ombro que eu acariciaria, a língua na língua da carmelita descalça, a língua no musgo entre as coxas.
Acontece que, de repente, me intriga esse copo d’água, único adorno no locutório, mais que nunca esse copo d’água torna-se agora foco de minhas averiguações obsessivas. Não aprecio mais estar aqui no Convento de São Lucas – apenas o copo d’água me interessa – não desejo mais aguardar sozinho na nudez do locutório para conversar com a carmelita descalça – apenas o copo d’água me interessa.
Agora mereço um pequeno descanso e aproveito para filosofar:
– Quem sou eu, quem é esse copo d’água que entrou na minha vida? Porque ele tenta, de todas as maneiras, arruinar o amor que eu sinto pela carmelita descalça?
AS JANELAS DO VIGÁRIO
Eu, quem sou? Para citar Amiel, “sou apenas uma frágil elegia”.
Tudo pesa sobre a casca da cigarra de meu agônico destino. Para apaziguar a opressão, de binóculo, passo a tarde espiando os brincos, ancas, pernas de mulheres que entram e saem de lojas, farmácias, bares e acabo de flagrar o Vigário que, também de binóculo, passa os olhos nos brincos, ancas, pernas de mulheres que entram e saem de lojas, farmácias, bares.
De uma das janelas o Vigário também espia as moças que sentam de pernas abertas no banco da praça da Matriz.
Eu, quem sou? Para citar Amiel, “sou apenas uma frágil elegia”.
Tudo pesa sobre a casca da cigarra de meu agônico destino. Para apaziguar a opressão, de binóculo, passo a tarde espiando os brincos, ancas, pernas de mulheres que entram e saem de lojas, farmácias, bares e acabo de flagrar o Vigário que, também de binóculo, passa os olhos nos brincos, ancas, pernas de mulheres que entram e saem de lojas, farmácias, bares.
De uma das janelas o Vigário também espia as moças que sentam de pernas abertas no banco da praça da Matriz.
CLITEMNESTRA
Eu afogo Agamémnon na banheira e reafirmo o preceito cáustico:
– Não chame Agamémnon de feliz, até que ele esteja morto. E agora – morto –, Agamémnon está feliz?
Claro que, morto, ele não sabe mais da sombra da oliveira ao meio-dia, e nunca mais fala quando quer falar, nem quando querem que fale. Agamémnon discursa às paredes de seu túmulo, coça da perna um verme, pensa, se é que um morto pode pensar, que lá fora ninguém é feliz, mesmo vivo.
Eu afogo Agamémnon na banheira e reafirmo o preceito cáustico:
– Não chame Agamémnon de feliz, até que ele esteja morto. E agora – morto –, Agamémnon está feliz?
Claro que, morto, ele não sabe mais da sombra da oliveira ao meio-dia, e nunca mais fala quando quer falar, nem quando querem que fale. Agamémnon discursa às paredes de seu túmulo, coça da perna um verme, pensa, se é que um morto pode pensar, que lá fora ninguém é feliz, mesmo vivo.
MARTINUS
Hoje, Martinus, você disse à mesa que, se contraísse novas núpcias, iria talhar a mulher na pedra para não ter dúvidas da obediência dela.
Martinus, os moradores de tua cidade me chamam de Senhora mestra, não porque te obedeço, mas porque os curo.
O único bem que conservou foi a mansão senhorial com o pátio da criadagem reduzido ao mínimo. E armaram-se as redes de bardana para agüentar o calor nas alcovas desmanteladas.
Hoje, Martinus, você disse à mesa que, se contraísse novas núpcias, iria talhar a mulher na pedra para não ter dúvidas da obediência dela.
Martinus, os moradores de tua cidade me chamam de Senhora mestra, não porque te obedeço, mas porque os curo.
O único bem que conservou foi a mansão senhorial com o pátio da criadagem reduzido ao mínimo. E armaram-se as redes de bardana para agüentar o calor nas alcovas desmanteladas.
A TACITURNA
(A partir de um texto de Paul Celan)
Quando vem a taciturna e quebra os canos, a casa fica sem água; a taciturna destroça rosais, canteiros de gérberas e a Casa do esquecimento, onde a taciturna vive, exala um olor verde-mofo.
Para ele a taciturna verte a lágrima no escorpião; a taciturna sopra na pele; para ele ela enche os copos de sol; para ele ela murmura as sombras do amor.
Ele, da varanda da Casa do esquecimento, atira flechas em qualquer um: quem passa à frente da farmácia, flecha no ombro; quem sai da igreja dos Beneditinos, flecha na testa; quem entra no cartório, flecha nas costas; quem sai da lotérica, flecha no pé.
Ele ela: olho no olho, no frio, presos nas profundezas, somem de si para sempre.
Ele:
– Escuto, o machado floresceu.
Ela:
– Escuto, o local não é nomeável.
Ele:
– Escuto, a chuva que a tudo observa cura o enforcado.
Ela:
– Escuto, falam da vida como único refúgio.
(A partir de um texto de Paul Celan)
Quando vem a taciturna e quebra os canos, a casa fica sem água; a taciturna destroça rosais, canteiros de gérberas e a Casa do esquecimento, onde a taciturna vive, exala um olor verde-mofo.
Para ele a taciturna verte a lágrima no escorpião; a taciturna sopra na pele; para ele ela enche os copos de sol; para ele ela murmura as sombras do amor.
Ele, da varanda da Casa do esquecimento, atira flechas em qualquer um: quem passa à frente da farmácia, flecha no ombro; quem sai da igreja dos Beneditinos, flecha na testa; quem entra no cartório, flecha nas costas; quem sai da lotérica, flecha no pé.
Ele ela: olho no olho, no frio, presos nas profundezas, somem de si para sempre.
Ele:
– Escuto, o machado floresceu.
Ela:
– Escuto, o local não é nomeável.
Ele:
– Escuto, a chuva que a tudo observa cura o enforcado.
Ela:
– Escuto, falam da vida como único refúgio.
A CHUVA NO JARDIM DE INVERNO
Mas o verdadeiro espólio só se encontra nas profundezas da noite,
na segunda, terceira, quarta hora.
Kafka
Moro no Graben, perto do Café Continental, enterrado vivo num cubículo de cimento, que não permite que eu dance sob a tempestade, que eu corra pelas ravinas, que não autoriza que eu dê mais que um passo para cada lado.
A claridade que vem da geladeira finca sua luz fria na minha retina e, para que essa luz penetre meus tímpanos, inclino a cabeça até o ladrilho, ali me abandono, encolhido, e quase penso que escuto a chuva no jardim de inverno.
Finjo tão completamente que sou a chuva no jardim de inverno, e aproveito para encharcar aquela que sai às pressas do Café Continental.
Ela chega em casa aturdida e a primeira coisa que faz é buscar uma toalha no banheiro. Tenta se enxugar, não consegue, porque está molhada com a chuva fingida que sou, chuva que escuto no jardim de inverno.
Ela me leva para a cama, sem saber que está molhada de mim, e sonha que é uma tempestade que rompe as maciças paredes do cubículo onde moro aqui no Graben.
Mas o verdadeiro espólio só se encontra nas profundezas da noite,
na segunda, terceira, quarta hora.
Kafka
Moro no Graben, perto do Café Continental, enterrado vivo num cubículo de cimento, que não permite que eu dance sob a tempestade, que eu corra pelas ravinas, que não autoriza que eu dê mais que um passo para cada lado.
A claridade que vem da geladeira finca sua luz fria na minha retina e, para que essa luz penetre meus tímpanos, inclino a cabeça até o ladrilho, ali me abandono, encolhido, e quase penso que escuto a chuva no jardim de inverno.
Finjo tão completamente que sou a chuva no jardim de inverno, e aproveito para encharcar aquela que sai às pressas do Café Continental.
Ela chega em casa aturdida e a primeira coisa que faz é buscar uma toalha no banheiro. Tenta se enxugar, não consegue, porque está molhada com a chuva fingida que sou, chuva que escuto no jardim de inverno.
Ela me leva para a cama, sem saber que está molhada de mim, e sonha que é uma tempestade que rompe as maciças paredes do cubículo onde moro aqui no Graben.
Diálogo dos mortos
(a partir de um texto
de Luciano de Samosáta)
À beira da piscina da casa de Freud, surge o seguinte comentário:
– Esse monte de ossos aí é da Cleópatra.
O gordo Pepe sorve a espuma lateral do copo de cerveja e diz:
– Então, foi por essa Cleópatra que morreram mil bravos? Foi por ela que sucumbiram tantos egípcios e bárbaros, foi por ela que tantas naus afundaram no
Bósforo, e que tantas cidades foram escorraçadas do mapa?
(a partir de um texto
de Luciano de Samosáta)
À beira da piscina da casa de Freud, surge o seguinte comentário:
– Esse monte de ossos aí é da Cleópatra.
O gordo Pepe sorve a espuma lateral do copo de cerveja e diz:
– Então, foi por essa Cleópatra que morreram mil bravos? Foi por ela que sucumbiram tantos egípcios e bárbaros, foi por ela que tantas naus afundaram no
Bósforo, e que tantas cidades foram escorraçadas do mapa?
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