sexta-feira, 30 de novembro de 2007


Ver Jacques tati

Quino


Elliott Ervitt



Meus olhos vão ver o paraíso, sim,
mas serão olhos apodrecidos.

Will Eisner


Ava Gardner


Rob Wright


SOB A CHUVA EM ABIQUIU

Dá para o quintal de vento e de monturos
a respiração de Deus, mais conhecido
como “o mais frágil de todos”.
Deus, nu, sobe no mamoeiro enlaçado à nuvem.

– Confundiram tudo – diz Deus,
e do rio de seu coração entre neblinas
fogem acordes de violas à beira do abismo,
onde o ar torna-se mais leve com a passagem da música.

Deus iça a pandorga e o fio que a iça
está encordoado de arco-íris sob a chuva.
O vento no quintal é a ressurreição.

Deus, quando vem o vento, ilumina-se
com as partículas cristalinas que o sol espalha
no coração da bolha de sabão – coração de Deus.

Quino


Miran


Cortona


George Tice


Se é cedo, ergue-se, anda, cansa, até alongar-se novamente e adormecer na rede e sonhar que um íbis está nevando no outro mundo, que um íbis está lendo o sol. Fim do sonho, K. acorda para ver as bacias de água pelo casarão. Reza: “Esta é a confiança que temos em Deus: se lhe pedimos alguma coisa segundo a Sua vontade, Ele nos ouve”. (João 5, 14). K. tenta o sortilégio e esboça uma oração: “Meus pés de ouro equilibram-se em peixes. Inciput erat verbum: no princípio era a palavra. A palavra é clarabóia sobre o pensamento escuro. Jesus cita as antigas escrituras para sugerir que somos deuses. Na fonte fria lavar cabelos, lavar cabelos na fonte fria. Pés de pluma equilibram-se em águas. Tenho confiança em Deus e a Ele peço quatro coisas, segundo a Sua vontade: a força da criança, a força das mulheres, a força da poesia, a força da música.”

Cartier Bresson


As barcas ao pairo. Recolho do céu do cronista clássico aquilo que o inunda de luz --- o samudrá --- depois estendo a toalha na areia fina da praia de Pinheiros-bravos. O guarda-sol é branco e Lucana me disse que chegaria às 8 horas. Percebo que ela se aproxima com um cesto de verga ao ombro, ondina que é, acena para mim que ardo com sede embaixo do guarda-sol branco e some, com timidez de virgem, a pele de seu fogo no mar. A verdadeira linguagem das preces é serva reverente do que no céu é música hidráulica. Com seu cacho de vide, suas algas, seu alumbramento, Lucana sai das águas e as esquece na fria areia. Seu corpo junto ao de K., agora, é uma delicada cena das Bodas de Canaã. O Vazio aparente das ondas – salgadas brancas espumas –, espumas que, segundo a óptica de Lucana, imitam a neve dos telhados de Kyoto. K. e Lucana adormecem e sonham que Buddah, quase invisível sob a Árvore no parque de Sarnath, indica com os olhos a pequena caixa negra. Nela uma pedra pura --- lapidem esse aquam fontis vivi --- pedra que é uma fonte de água viva.

Flor Garduño


“É perfeitamente pensável que o esplendor da vida circule por toda parte, e sempre em toda a sua plenitude, acessível mas velado, profundo, invisível, longínquo. Mas ele está ali, sem hostilidade, sem relutância nem surdez. Com a palavra certa acode ao chamado. Essa é a essência da magia, que não cria, mas convoca”. Depois de ler o aforismo acima de Kafka, partir a torrada em duas e beber o café, Lucana olha para a janela com vidraças azuladas de seu quarto. Leva um susto e argumenta em silêncio: “Não, não é uma foice, é apenas a cortina”. Fica olhando a cama desarrumada, desnuda-se, as águas do chuveiro choram desesperadas e ela só tem tempo de pensar que nunca havia tocado a pele de K. O sabonete Phebo recende aroma de noite sossegada por toda a casa. Também o mantra recende, que Lucana entoa: “Tadyatha om gate gate paragate parasamgate bodhi svaha”. “É assim, avance avance, vá adiante e transcenda, vá diretamente adiante, firmemente enraizado na iluminação”. Ouro nos cactos que circundam a Casa de Água: crótalo, crótalo, crótalo. Folha de hortelã no chá frio. Lucana morde conchas finas. No domingo recalcitrante o fresco de águas indo entre galhadas e pedras. Lucana sorve, para assombrar o assombro: ouro-crótalo, fina água de goivo, um risco de lágrima na concha. Adoça a espinha do peixe no cantábile que vaza do gramofone e se derrama nos tímpanos. O que salva é escrever nesse estado de óbvia distração, encostado à inclinada palmeira musical que torna mais suportável a banquisa.

Man Ray


O vendaval e seu assombro afundam nas vidraças, nos azulejos e nas pedras ardentes. Nem sabe o vendaval que é invisível. Nem o invisível sabe que é vendaval. Quando nada acontece, temos duas escolhas: escutar o sortilégio que jorra dos olhos de Oxum ou irmos ao bordel cuspir aguardente na coxa das três mulheres do sabonete Araxá. O sopro de K. enfia-se no vendaval e os dois erguem a saia das mulheres, arrancam da cabeça dos pescadores os chapéus de palha, escandalizam as roupas no varal e eles invadem, também, portas e janelas das casas e, contam os pescadores, o sopro de K. dentro do vendaval pode ser visto – agora – circulando daqui para ali seu transparente movimento. No único antiquário de Villa da Concha, K. adquiriu o martelo essencial e, com ele, vai esfacelar a fria lesma, a fria sombra do agouro, a fria palavra de gelo. Sob o céu o vento faz uma imensa curva de cristal. Na livraria próximo ao antiquário, K. encontra o primeiro fólio do nebuloso incunábulo Imago Mundi, do filósofo Hervum. Tanto vendaval suspenso na altura do ar refrigera e dissolve os maciços do sol, resgata da cinza da infância o fluido fio marinho, a castidade da serpente, o fogo e os fogos. K. rabisca um fino corte de faca na curva de cristal e o cristal apenas tem forças para dizer, com Quevedo, que o que desejamos é:

No ondas ni luciente cristal:
agua al fin dulcemente dura

Édouard Boubat


Na única torre do casarão colonial, imitando água fria no búzio, K. desfere à queima-roupa a sentença idílica: “Escutem! Pois, na verdade, uma vez mais vamos arar o campo de Lucana de olhos claros”. Ó Hölderlin, Hölderlin, quanto mais poético, mais real. Cada palavra – matéria fina de toda certeza – a nossa microlíngua a pronuncia e com esta matéria fina tentamos incitar o linho que nos envolve e abisma. O Hino Homérico V (uma nota explicativa à música dos gregos), dedicado à sibila Lucana, finca na retina que é nossa o preceito óptico do califa al-Hakim: “Se o sol que vislumbramos é a sombra do sol, imagine, nesse momento, como é o próprio sol?”. O Vazio do horto no verão, todo de conchas e frutas. A linha das marisqueiras suspensa no aquático. K. recorda uns versos de Alice Ruiz: “Pequeno/tinha um pensamento/a selva/quando crescer. Em algum lugar/na selva/corre grande um pensamento”. Ela ressuscita, cada manhã, com os olhos abertos para que as imagens sigam fluidas na torrente limosa e aprendeu, na caatinga, que a língua dos mortos é de pedra. A cada momento, Lucana, a linha molhada de cílios, cruza, aqui na Villa da Concha (onde nada pode acontecer, a não ser a lenda), com esses fariseus ressoantes e vazios como tambores. Fariseus presos nas sacristias ou nos cartórios, e que só conhecem a letra fria da lei. E passa, Lucana, sob os pórticos da pequena vila, sem o pedrento e a conspiração. Pois esse lugar onde ela vive é Villa da Concha. Nunca vi peixes mais escamosos que os que viçam nesse sumidouro. Ali caules gordos abandonados no lodaçal. A pequena igreja do Carmo, se a vemos daqui do cais de pedra, esconde eucaliptos, figueiras, pinheiros-bravos e o vento muda de lugar, passa antigo pelos cabelos de Lucana, até esvair-se para sempre no perau. Como se rezasse missa n’água, atrás de um fumo leve ou de um rosário de folhas, espio Lucana (ela ainda não me conhece) que desliza na canoa. Villa da Concha, onde não entra nem a morte nem o pecado, onde não entra o mal: a cloaca, o sicário. Aqui, nesse vilarejo à beira-mar, tudo é música de Maria Bethânia, celebram-se as bodas, e a entrega à preguiça é um suave vício. E Lucana, ali na canoa, sua pele interior um pouco molhada, ama o riso, o amor, a divindade. Depois do passeio de canoa, ela encosta-se à varanda e sorve lentamente o chá de laranjeira. Ainda não conhece K., porque a voz de K. vive num casarão colonial, onde passa os dias de sua vida à beira de um túmulo florescido llorando a mares.

Irving Greines


Henry Fox Talbot


Anon