sábado, 2 de agosto de 2008

Matisse

O RASTRO

Se ali o céu, acúmulo de ar,
ourografia nebulosa,

água corrente o céu --- via régia ---
linguaviagem em direção ao sabre lúcido,
à prosa da piscina vista do belvedere.
Ouçamos, pois, como soa o céu:
sem anular o sonho, antes o vivifica.
Se o céu parece comum,
é porque não o vimos ainda.
Despojar a palavra da palavra,
confessá-la em música.
O céu passou, mas o rastro do céu,
fixo nesta matéria fina de toda certeza
--- a palavra ---
permanece ao alcance do sopro
que a língua da tempestade cura.
7 fotógrafos de ovos

Anne Arden McDonald, 2008

Jerry N. Uelsmann, 2007

Keystone, 1900

Laszlo Layton, 2003

Mariana Cook, 1999

Mikhail Kudish, sem data

Paul Nadar, 1890



Manoel de Barros

Entrevista

com Manoel de Barros

Confraria: Todos perguntam ao senhor: “qual é a matéria de sua poesia?”. Nós perguntamos: o que é matéria de poesia?

Manoel: Pra meu gosto matéria de poesia é a palavra Poesia, pra mim é armação de palavras com um canto dentro. O canto é que comanda o verso até chegar a um encantamento. O canto pode ter até ritmo de samba ou forró.

Confraria: Quantos cagos são necessários para desmoralizar um sublime?

Manoel: Você sabe que o sublime é teimoso e bem guardado pelos aristocratas. Carlitos desmoralizou o sublime com a sua bengalinha de vagabundo e a sua cartola. A cartola e a bengalinha de Carlitos foram cagos geniais sobre o sublime dos aristocratas. O meu cago foi modesto e nem mil que eu desse no sublime valeriam como a bengala de Carlitos.

Confraria: O senhor acha que a qualidade da poesia brasileira de hoje é a causa do aquecimento global?

Manoel: Acho que a poesia não causa nada porque a poesia é nada. E se o Nada desaparecer a poesia acaba.

Confraria: Em meio ao pregão entre poetas “eruditos” e “populares”, dê seu lance: é possível realmente uma poesia afastada da realidade ou toda poesia é, afinal, uma outra realidade.

Manoel: Acho que poesia é uma outra realidade. Ela é produto das visões de um poeta. E as visões trazem por dentro nossas loucuras, nossas fantasias e coisinhas à toa, sem procedência.

Confraria: O que é mais virtual, a poesia publicada na internet ou a poesia que um poeta não conseguiu publicar?

Manoel: Poesia virtual há de ser como a transa virtual. No meu tempo de menino transa virtual a gente chamava de matar bentevi a soco. Na internet não sei como chamam a poesia virtual.

Esta matéria foi publicada originalmente na revista cultural “Confraria do vento”.

Conferir a surpreendente
Confraria do Vento

http://confrariadovento.com/revista/abertura.htm


Alice Ruiz
Pequeno
tinha um pensamento

a selva
quando crescer

em algum lugar
na selva
corre grande um pensamento


Alice Ruiz

Miran


Manuel Álvarez Bravo, 1974


Lucana andando em Villa da Concha
Na única torre do casarão colonial, imitando água fria no búzio, K. desfere à queima-roupa a sentença idílica: “Escutem! Pois, na verdade, uma vez mais vamos arar o campo de Lucana de olhos claros”. Ó Hölderlin, Hölderlin, quanto mais poético, mais real. Cada palavra – matéria fina de toda certeza – a nossa microlíngua a pronuncia e com esta matéria fina tentamos incitar o linho que nos envolve e abisma. O Hino Homérico V (uma nota explicativa à música dos gregos), dedicado à sibila Lucana, finca na retina que é nossa o preceito óptico do califa al-Hakim: “Se o sol que vislumbramos é a sombra do sol, imagine, nesse momento, como é o próprio sol?”. O Vazio do horto no verão, todo de conchas e frutas. A linha das marisqueiras suspensa no aquático. K. recorda uns versos de Alice Ruiz: “Pequeno/tinha um pensamento/a selva/quando crescer. Em algum lugar/na selva/corre grande um pensamento”. Ela ressuscita, cada manhã, com os olhos abertos para que as imagens sigam fluidas na torrente limosa e aprendeu, na caatinga, que a língua dos mortos é de pedra. A cada momento, Lucana, a linha molhada de cílios, cruza, aqui na Villa da Concha (onde nada pode acontecer, a não ser a lenda), com esses fariseus ressoantes e vazios como tambores. Fariseus presos nas sacristias ou nos cartórios, e que só conhecem a letra fria da lei. E passa, Lucana, sob os pórticos da pequena vila, sem o pedrento e a conspiração. Pois esse lugar onde ela vive é Villa da Concha. Nunca vi peixes mais escamosos que os que viçam nesse sumidouro. Ali caules gordos abandonados no lodaçal. A pequena igreja do Carmo, se a vemos daqui do cais de pedra, esconde eucaliptos, figueiras, pinheiros-bravos e o vento muda de lugar, passa antigo pelos cabelos de Lucana, até esvair-se para sempre no perau. Como se rezasse missa n’água, atrás de um fumo leve ou de um rosário de folhas, espio Lucana (ela ainda não me conhece) que desliza na canoa. Villa da Concha, onde não entra nem a morte nem o pecado, onde não entra o mal: a cloaca, o sicário. Aqui, nesse vilarejo à beira-mar, tudo é música de Maria Bethânia, celebram-se as bodas, e a entrega à preguiça é um suave vício. E Lucana, ali na canoa, sua pele interior um pouco molhada, ama o riso, o amor, a divindade. Depois do passeio de canoa, ela encosta-se à varanda e sorve lentamente o chá de laranjeira. Ainda não conhece K., porque a voz de K. vive num casarão colonial, onde passa os dias de sua vida à beira de um túmulo florescido llorando a mares.