segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
A noite acaba feito gim. O senhor K. não é uma criatura débil como uma haste de verbena; e até afirmou, em determinada ocasião, que o excesso é fundamental; que o excesso leva ao Castelo da Pureza; disse, igualmente, que a vida lhe fugia em cada sopro que vazava dos lábios finos do destino. Tinha um olhar, o senhor K., de ser gerente do The Bay Hotel --- mas ele é o gerente do The Bay Hotel ---, apenas esqueceu por um instante. Seus primeiros pensamentos da manhã já se parecem com os seus últimos pensamentos do dia. A cabeça, a do senhor K., mais bruta do que a cabeça do açougueiro Hamm. Apenas o tédio é, nesse meio-dia de verão, mais bruto, e cáustico. Não aspira, o senhor K. não aspira nunca ao céu. Como Orfeu, parece que está sempre recolhendo no vaso da alma, a um só tempo, um sáurio gravemente ferido e uma deusa com tímpanos de chuva. A noite acaba feito gim. Foi sugerido ao senhor K. que, entre as cinco irmãs — escolhesse uma—, e o senhor K. apontou para Joana, a única a quem a natureza tinha dado todas as rosas do amor. Todas as outras quatro irmãs mais pareciam ter seiva de areal, isto é, eram secas. Eu convido Joana para as fadigas de uma noite de núpcias ou o lúbrico serpentário da língua na nuca. Joana, a boa menina, lânguida após um copo de gim ou mais lânguida se o senhor K. tenta acariciar o musgo molhado entre suas coxas. A noite acaba feito gim. Joana guarda no relicário íntimo a sua fragilidade e a razão de preferir uma Cassiopéia boreal a uma longa temporada no Gehenna fumegante; entre ácaros e lesmas, entre chifres e cascas de cigarra. Um sopro inaudível conta à Joana que ela sabe mais que as plantas e os peixes; que ela sabe mais que os santos. Joana morena, olho verde, cabelo comprido. Por causa dela o galã da noite --- o senhor K.--- poderia até entoar antífonas religiosas na Ilha da Ilusão ou, após beber litros de gim, cairia de língua nas peles, nos pêlos dessa Joana de circunstância --- dessa mulher que enxágua retinas --- e se entrega, de quatro, feito uma piscina molhada, ao senhor K.. A noite acaba feito gim.
Há um pensamento do filósofo alemão Schopenhauer, que li em "O Mundo como Vontade e Representação", que reza assim:
O ponto em que a Coisa-em-si entra mais imediatamente no fenômeno é aquele em que a consciência ilumina a Vontade.
A Vontade é, para Schopenhaeur, irracional. A Vontade, no fundo, não sabe o que quer. E, para educá-la, só há uma saída: focarmos as coisas que nos cercam (ou as coisas que imaginamos) com o Vazio da contemplação tranqüila, sem intenção, desapegada.
Segundo Kenzo Awa, mestre do Kyudô (Caminho do Arco), se quisermos acertar o alvo, devemos proceder assim: “Na máxima tensão, sem intenção”.
Algo dispara a flecha, Algo acerta o alvo.
Algo: outro nome para o Deus, para a quintessência.
Mas também Algo
diz pára de ressentimento
diz pára de medo
diz pára de mentir
diz pára de sofrer
diz pára de desamor
diz pára de pobreza
O Eu, que só será Eu se for um Vazio reverente, se torna o claro espelho do objeto. Wu wei: ação na não ação. Noutras palavras, o Eu deixa fluir, reverente, o Algo que o rege no íntimo; o Eu não se intromete, deixa a onda jorrar, a música ser música.
Vazio (Capítulo 1 do Tao): “Não sendo, podemos contemplar sua essência”.
Objeto (Capítulo 1 do Tao): Sendo, apenas vemos sua aparência”.
O Deus, segundo o Evangelho são João, “é Espírito”. E, sabemos, o Espírito sopra onde quer.
Se me permitem um exemplo: Na máxima tensão, o Eu profundo de cada um de nós contempla, sem intenção, a seguinte cena prosaica: um bule que verte chá fervente na toalha de linho. A Coisa-em-si (que é libérrima e irracional por natureza) é que retém a potência profunda do que está acontecendo com este bule que verte chá fervente na toalha de linho. Se o Eu se intrometer nesta imagem do bule que verte chá fervente na toalha de linho, o Eu só terá a fantasia, a farsa, e se transformará num bicho peludo de longas patas, mais conhecido como ego. Por outro lado, se o Eu deixar fluir a Coisa-em-si deste bule que verte chá fervente na toalha de linho, aí o Eu terá a presença do Algo, do Deus que, respeitado em sua ancestralidade, virá à tona e revelará ao Eu todo o Seu Mysterium.
E sendo Mysterium, é improviso, é Vita Nova, é Algo, é o Deus, é paraíso, é jazz do coração.
Nunca é demais recordar a etimologia do vocábulo Deus: vem do sânscrito –, onde é grafado D'jeus e significa lua clara no céu: mente silenciosa, sem sonhar.
De onde se conclui que o Deus, tendo forma lunar, é o feminino.
O Deus, o Algo, é luz, é consciência.
A quem o Deus serve, a quem o Algo serve? A todo Eu que tiver consciência do Deus, do Algo.
Quando pronuncio a palavra feminino, não me refiro à mulher, mas ao Ser, que tanto pode ser macho ou fêmea.
Há homens que são mais femininos que as mulheres.
O cano do canhão é o pênis masculino; os edifícios pontiagudos são pênis masculinos; o punhal é o pênis masculino.
A árvore é feminina; a pérola é feminina; o vento é feminino.
A Coisa-em-si: aquilo que independe do espaço e do tempo.
A Coisa-em-si independe da causa e do efeito.
Segundo Platão, uma Idéia é aquilo que sempre é, mas nunca vem a ser, nem deixa de ser.
Idéia: objetividade imediata da Coisa-em-si.
Para Schopenhauer, a Coisa-em-si é pulsão vital (a Trieb freudiana: força vital). Pulsão como discernimento vital? Ainda mais: pulsão como discernimento vital do discernimento vital.
Pulsão (a partir de um aforismo de Lacan): objeto jamais fixável de uma vez por todas.
Fixar o que não pode ser fixado, isto é função da arte que cria a consciência que ilumina a Vontade.
Para Schopenhauer a maior das artes é a música. Ele a menciona em "O Mundo como Vontade e Representação": se tudo findasse, ainda não findaria a música.
O texto acima, inédito, é um fragmento do livro O cacto e o angorá (o aqui e o agora) – A arte vazia do arqueiro de palavras, de Fernando José Karl.