quinta-feira, 2 de julho de 2009

Larry Wiese, 2005

A noite acaba feito gim


No ondas ni cristal: agua al fin dulcemente dura.

Quevedo




Eu, K'an Awa, sou incrédulo, mas tenho um pequeno negócio – A Loja dos Aquários – na rua dos Olivos, 22. Eu, que pratico Kyudô, também recendo a chifre, e, de vez em quando, abro a facão uma clareira no capinzal atrás do sobrado onde passo os dias. Pela janela envidraçada gasto os olhos, mas não consigo ler o nome do barco parcialmente apagado pela ação das ondas.

A mulher que eu amo guarda um talo de chuva na língua. Ela sai de baixo do guarda-sol branco, bate a toalha para que os grãos de areia despeguem; anda, quieta, e cobre a cabeça com o mar. Ela é escritora; finge ser uma das três belas de Edo. Ela, na esquina sempre ventando, vive num casario colonial do século 19 e lá vai fumaça. A distância entre o meu sobrado e o casario dela é de 100 metros.

Nada nunca soube, antes eu sou – poucos aceitam esse fato – eu sou o autor, o verdadeiro autor de alguns textos atribuídos a outros escritores. “Este segundo desapareceu para sempre”, leio aqui num tomo de Cioran.

Tudo é insignificante: para onde o verme se vira continua a ser verme.

Não perder de vista as entranhas do inescrutável. Folheio uma anotação de Nietzsche: “A percepção final possível para uma raça já está implícita em seu primeiro mito religioso”.

Esse lugar onde eu e uma das três belas de Edo confluímos; o nome desse lugar é Candelária, cortado por um ribeirão de água potável. A mulher que eu amo tem algum domínio dos rudimentos da língua catalã. Ela cheira cocaína pura quando nas calhas do casario colonial águas da chuva. Ela enfia não sei o quê entre as coxas: talvez uma enguia do mar Adriático. Isso mesmo: ela phode com uma enguia.

No quarto dela a luz morna do abajur não emite um “a”. Eu aprecio muito escutar as máquinas da lavanderia. As noites eu as passo em claro – soníferos, analgésicos, cortisona – e nada: a dor vigora ainda mais nesse nervo exposto; dor mais suja que pau de galinheiro.

Ela – uma das três belas de Edo – recebe o vento de Candelária para o chá – tea for two – jazz do coração: prosa que dá água na língua.

Eu também prefiro dar as caras na rua. Vivo recluso num caramujo com meu
mofo à espera do inevitável desenlace. A barca com sua grande vela de bambus: a imagem de um junco chinês no mar. Não sei por que cargas-d’água penetrei surdamente essa rua sem saída.

Um balaio cheio de mangas, eis o que ela deixou na soleira do meu sobrado. No casario colonial dela esqueci um cesto de carpas. A noite acaba feito gim. O gim acabou; o gelo; e eu busco uma morte de luz que me consuma, enquanto espanco os ossuários com um ramo de chuva.

Uma das belas de Edo é uma engolidora de fogo; engole o fogo dessa manhã que ferve. Não vê a hora, ela, de entornar na língua um tonel de água.

Hoje é meu último dia e fico horas chupando a gueisha da chuva que é dela.

Pierre-Ambroise Richebourg, 1857


Adaga do califa Omar.

MEDITAÇÃO DO CALIFA OMAR
SOBRE ALEXANDRIA (640 d.C.)

Com seu periscópio de concha o califa Omar perscruta a baía de las Gavenas, em Alexandria. O caminho do poeta não é o do silêncio, mas o da luxúria.

As ondas nunca ociosas na baía de las Gavenas.

O califa Omar, nesse ano de 640 d.C., escreve numa das paredes do Palácio Real que o princípio de toda poesia é suprimir masmorras, leis da razão: na pedra gasta infiltrar a phantasia: e nos conduzir ao caos originário.

Adelaide Hanscom Leeson, 1920


A morena é uma dessas colhedeiras de marisco e sopra de minha alma a ferrugem e o remorso.