quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Betti Mautner


A carmelita descalça e o copo d’água
Os antigos sentiram que a escrita tocava o invisível. Na realidade, a linguagem, ela própria invisível, mostra o que está fora da visão, nomeia o invisível. A escrita, que capta a linguagem, faz ver o invisível e se torna o lugar de encontro entre os vivos visíveis e os eternos invisíveis.
Herrenschmidt


Aos domingos aprecio ir ao Convento de São Lucas e aguardar, sozinho na nudez do locutório, que a voz misteriosa da carmelita descalça se anuncie do outro lado da cortina de organza escura. Amo essa conversa solitária com a mulher velada, pressinto os pés descalços dela no piso do convento, pés que eu beijaria, clavículas que eu acariciaria, a língua na língua da carmelita descalça, a língua no musgo entre as coxas.

Acontece que, de repente, me intriga esse copo d’água, único adorno no locutório, mais que nunca esse copo d’água torna-se o foco de minhas averiguações obsessivas. Não aprecio mais estar aqui no Convento de São Lucas – apenas o copo d’água me interessa – não desejo mais aguardar sozinho na nudez do locutório para conversar com a carmelita descalça – apenas o copo d’água é meu deus. Agora mereço um pequeno descanso e aproveito para perguntar:

– Quem sou eu, quem é esse copo d’água que entrou na minha vida? Porque ele tenta, de todas maneiras, arruinar o amor que eu sinto pela carmelita descalça?

No locutório o único adorno: um crucifixo de prata. Atrás da cortina preta, a mulher descalça...

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