Durante
essa chuva de verão, que destelha o casarão rente ao bosque de eucaliptos,
Belacqua lê – num
tomo de Falstaff –
que fingir de morto para conservar a vida não é fingir a imagem da vida, senão
representá-la com verdade e perfeição.
Morrer
é que é fingimento, porque quem morre não tem vida de homem, e, porque está
morto, o homem não consegue mais escutar o rumor das palavras nem fisgar no
anzol um martim-pescador, e, porque está morto, o homem não faz mais o sinal da
cruz com água benta na igreja dos Lavados nem come frutas de carandá nos
cachos, e, porque está morto, no rosto do homem não vem dormir a noite nem a
música lava seus pés, e, porque está morto, a língua que o homem traz dentro da
boca não diz mais os vocábulos tango, grimório, cristal, lavanda, besouro,
azeite de Oliva, fonte, Clementina de Jesus, e, porque está morto, o homem não
pode mais tomar banho de chuveiro, e, porque não respira, esse homem, a rigor,
não passa de fingimento de homem.
Porque
Belacqua está vivo e deitado na rede da varanda, o bosque de eucaliptos e o mar
não podem ser tocados pelo fingimento; ainda que ao sabor do acaso, Belacqua
está de fato vivo e não tem dúvidas: a palavra que pronuncia com a língua de
sua boca é a mesma palavra que pode ser lida no seu caderno de apontamentos.
Belacqua, nas horas
vagas, é virtuose na arte de se fingir de morto. Algumas vezes, quando está
fingindo que morreu, ele é acometido de um torpor incontrolável que o afunda no
sono.
O
sono é a morada do sonho.
Se,
no sonho, Belacqua vê uma árvore, pode voar sobre ela na garupa de um leão ou
pode transmutar o leão em chuva e ficar dançando na chuva durante horas ou pode
ser o piloto do Graf Zeppelin lá em cima na luz ou pode escutar a música que as
pedras exalam ou pode ler no muro branco que a sensatez é que aumenta o
absurdo.
No sonho de Belacqua,
sonho que é uma astúcia da vigília, chegam aromas de amanhã, e isso é tão
inexplicável quanto o aparecimento do gênio quando Alladin esfrega a lâmpada.
Belacqua sabe:
somente a palavra que repousa na quietude de um sono profundo consegue ser
suave e simples. Belacqua aprendeu: escrever é um sono mais profundo que a
morte, porque neste sono mais profundo que a morte não somos sequer um rosto
que se dissolve como um sonho, porque neste sono mais profundo que a morte o
único que podemos ser é o velho gozo elementar da chuva – chuva que, como os
cavalos, também se cansam – chuva que conduz ao branco muro da
solidão: http://www.youtube.com/watch?v=fz4MzJTeL0c
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