sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Quando o mestre Kenzo Awa explicava que o tiro com arco consiste em deixar partir a flecha sem a intenção de acertar, de atirar sem apontar, Eugen Herrigel, seu aluno europeu, não pôde deixar de dizer:

– Nesse caso, o mestre deve ser capaz de atirar de olhos vendados.

O mestre pousou nele um olhar prolongado, antes de marcar um encontro para a tarde desse mesmo dia.

Já era noite quando Herrigel foi introduzido no dojo. O mestre Awa convidou-o primeiro para um Cha no yu, uma Cerimônia do chá que ele próprio realizou. Sem proferir uma palavra, o ancião preparou o chá com todo o cuidado e, depois, o serviu com uma incomparável delicadeza. Cada um de seus gestos se desdobrava com a precisão e a elegância que só uma grande concentração pode dar. Os dois homens mantiveram-se em silêncio para poderem saborear convenientemente este harmonioso ritual. Um instante de eternidade, como dizem os Japoneses.

Seguido pelo seu hóspede, o mestre atravessou depois o dojo e foi colocar-se à frente do átrio que resguardava os alvos, colocados a 60 metros de distância. O átrio encontrava-se mergulhado na penumbra e dos alvos apenas se conseguia descortinar os contornos. Obedecendo às instruções do mestre, Herrigel foi lá colocar um alvo, deixando, no entanto, as luzes apagadas.

Na volta, reparou que o velho arqueiro se preparava para a cerimônia do tiro com arco. Após uma saudação dirigida ao alvo invisível, o mestre deslocou-se, dando a idéia de deslizar sobre o soalho. Os seus movimentos sucediam-se com a lentidão e a fluidez de uma língua de fumo que rodopia docemente ao sabor do vento. Ergueu os braços e depois os baixou. O arco retesou-se lentamente, até que a flecha partiu bruscamente, mergulhando na escuridão. O mestre permaneceu imóvel, com os braços esticados, como se acompanhasse a flecha até seu destino desconhecido, como se o tiro se prolongasse numa outra dimensão. Logo a seguir, e mais uma vez, o arco e a flecha voltaram a dançar nas mãos dele. A segunda flecha silvou como a primeira e foi devorada pela noite.

Cheio de pressa e curiosidade, Herrigel foi acender as luzes para ver onde se tinham cravado as duas flechas. A primeira encontrava-se no centro do alvo; a segunda arrancara – dessa primeira flecha – vários centímetros de bambu.

Herrigel foi buscar o alvo e felicitou o mestre pela façanha conseguida. Mas este retorquiu:

– O mérito não me pertence. Isto acontece porque deixei agir em mim Algo qualquer. E foi este Algo qualquer que permitiu às flechas se servirem do arco para se juntarem – fincadas – no alvo.

Retirado do livro A arte cavalheiresca do tiro com arco,
de Eugen Herrigel
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