Absorta em si mesma, intacta planta viva n’água, Dora Maar percorre o sonho mau dos mortos e os puxa, com os cabelos, por cima de ondas grossas de sal. Uma deusa Dora Maar? Apaguem seu nome, a pele, a respiração e dela só pode restar um mantra consciente da realidade. Se deseja grafismos de oleandros e sargaços, também deseja a primeira respiração da sereia branca e aguarda embaixo do guarda-sol o sopro do paraíso.
Dora Maar duramente verte algumas palavras, para sempre tecendo o corpo com asas acima do areal, e dá rasantes pelas quinas dos terraços suspensos de Málaga. Dora Maar aceita que Picasso a proteja, na praia, com aquele guarda-sol. Com o desconcerto habitual, Dora Maar vê sua cabeça ser arrancada dos ombros pelo vento e passar rente à torre da igreja de San Isidro, por baixo do céu a cabeça de Dora Maar e as nuvens entre as nuvens.
Aqui, na paia de Málaga, em estado de óbvia distração, Picasso contempla puramente os objetos: samambaias, conchas, coqueiros. Os dois entram no casarão plantado rente às águas. Ele passa a língua no salitre perfumado do pequeno bosque dela. Dora Maar abandona-se num dos recantos do hall desta edificação à beira-mar e sabe que, soprada além das vãs águas molhadas, há ondas, ondas, ondas.
Na cozinha ou deitada no quarto, recolhida de uma pronúncia de brisa inacabada, Dora Maar espia pela grande janela a luz que irradia sons de ouro – enquanto jasmineiros fervem no quintal – a luz adormece para sempre no ondular vazio de longas folhas das bananeiras.
No piso de uma das salas do casarão, caído um livro. À página 61, a linha de frase: “Encosto o raio no tímpano e o cântico opressivo se desvanece”.
Na piscina, na noite, ou agora singrando com a barca o rio azul de Sabalquivir, Dora Maar e Picasso já sabem que a pedra é uma fonte de água viva e que a siriringa é água tremente pela passagem dos peixes. A tempestade fincada no ponto de orvalho, não fere o orvalho. Nem chifres de rinoceronte machucam esse ponto aquático nem o mal fere a chama de Dora Maar sentada à escrivaninha. Preguiçosa e indiferente, ela cobre o rosto com véu de estrelas e, com ele, adoça a língua e o chá.
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