A POBREZA ESTILÍSTICA DA BRISA
“O zazen, o agora, um sopro,
tudo é eternidade”.
(Yoka Daishi)
A brisa atravessa o muro de pedra,
sopra flores em iguanas e retinas.
Antigamente foi princesa,
lambia sobrancelhas da deusa Saho,
via lágrimas no Olho do olho.
No século I vivia no pulmão da Phonte,
comia terra, benzia pedras e gatos.
Agora mata a sede no orvalho branco.
O EUCALIPTO DE HOKUSAI
No alto eucalipto,
o vaso com essência de capim silvestre.
Quem o esqueceu na altura,
equilibrado na ramagem?
Foi Hokusai, sempre que chove nos dias,
inventa um eucalipto na neblina,
e, lá no cimo da árvore perfumada,
na fina ramagem abandona o vaso.
Se venta, do alto eucalipto cai
um poema com essência d’água.
CERIMÔNIA DE FLORES
“Nunca se esqueça
do gosto de solidão
do orvalho branco”
(Bashô)
Shikô,
um dos Dez Sábios da escola de Bashô,
enquanto elabora – sem intenção – o ikebana,
medita no golfinho que segue a jangada:
lua n’água
empoleirada
A ARTE CAVALHEIRESCA DO ARQUEIRO ZEN
“Calma de primavera –
o monge da montanha
espia através da cerca”.
(Issa)
Kenzo Awa sabe que, nos caracteres chineses,
cada palavra acumula em si mesma
uma espécie de brilho interno:
constelação
que alonga cardumes
de órions contra sirius
DO LIVRO BRANCO DE HATTOTI TOHÔ
“De boca aberta,
contemplando as flores caídas,
a criança é um Buddah”.
(Kubutsu)
Hattori Tohô risca no papel de arroz
um concerto de bruma.
Risca também uma estrada vazia:
a jangada joga o mar
caminho descalço
A DEUSA SAHO
“Nem mesmo seu nome é conhecido:
flores de capim
à beira de um riacho”.
(Chiun)
A deusa Saho sonha com Sôgi.
Sôgi sonha com a deusa Sahô.
Água que os desnuda:
na salgada branca espuma,
nudez vai e volta.
KOAN MARINHO
“Mar de primavera –
o dia todo
lentamente ondula”.
(Buson)
Issa e seu poema sobre a solidão
entram no mar.
Issa se molha,
o poema pula um céu neste silêncio:
azul pra todo lado.
CHA NO YÚ
(O objetivo da cerimônia do chá
é purificar seis sentidos)
Kakemono na sala de chá:
flores de cerejeira no vaso de barro.
Água ferve na chaleira, escorre da folha de bambu.
Audição se purifica.
Quietas
as linhas da mão de mestre Rikiú.
VOLTA DE BARCO
ESCRITO EM JAPONÊS
E DEPOIS TRADUZIDO
Ano hanto no mawari o fune
de mawarimashita
Dei uma volta de barco ao redor
daquela península
BARCOS PARA A GUEIXA DE VOZ BRANCA
yuku fune ya: barcos que partem
nani mo oto nashi: não há barulho algum
ogusa ni: no capim
TUDO TEM NATUREZA BÚDICA
Um templo com tanque musgoso para o escorpião:
aberto o cristal da casca,
inocência escura.
A BICICLETA DE BUDA
Eu tive bicicleta de Buddah:
não afastava ilusões nem procurava a verdade.
Salsugem, sargaços e calmarias
nos pneus e guidom da bicicleta de Buddah.
Nada podia encontrar no céu além de nuvens,
sentava sob a Árvore Sagrada:
ia com a bicicleta de Buddah lá onde
o
vento
faz
imensas
curvas
de
cristal
ANGORÁ
A princesa Shai
– herdeira do império Chiuang –
mexe na constelação
para
segurar
o
angorá
pelos
pêlos
UM LOUVA-DEUS PARA ISSA
No meio do arvoredo um louva-deus se mexeu
a
sombra
também
O FILÓSOFO MO TSI
Enquanto o filósofo Mo tsi tenta fisgar
as carpas se espelhando no vento,
o milagre rabisca qualquer coisa no caderno de brisa.
Súbito uma carpa carregada pelo vento
entra pela única porta do Templo de Shirakawa.
Os olhos do filósofo, assombrados, fogem na neblina
e Mo tsi, cego, procura o caderno de brisa
embaixo do rio, do córrego, do riacho, do arroio,
na copa das árvores, debaixo da pedra,
nos bares, nos bordéis, nos hospitais,
nas barcas, nos copos de conhaque,
na infância, ah, e na infância encontra
o caderno de brisa com os dois olhos de Mo tsi
desenhados pelo milagre.
O AR UNE, O PENSAMENTO SEPARA
1. Qual a maior arma para subjugar Baal zebuh?
– O raciocínio correto.
2. Onde reside a força do filósofo Mo tsi?
– Na paciência de vislumbrar as curvas do bambual.
3. Que é o destemor?
– Indiferença à dor e aos desgostos.
4. Quem é pobre?
– Aquele que é ávido.
ANDANDO POR AÍ COM LEZAMA-BUDDAH
(Opus 1)
Súbito,
adivinhamos que a frase-brisa virá:
sete ervas, sete águas.
Oramos o conjuro,
molhamos na retina
a imagem inconclusa
de um cacto sem saída,
mas molhado na retina.
ANDANDO POR AÍ COM BUDDAH-LEZAMA
(Opus 2)
Angorá nos envolve:
imagem-angorá
traduzida para objeto.
Nos olhos do angorá a luz
vazando
para o íntimo silêncio.
PERGAMINHO
O paraíso é uma gravura chinesa
cercada de peixes miúdos, transparentes.
Contra as nuvens oníricas,
imortais eruditos do folclore chinês dão as boas-vindas
a um recém-chegado
ao domínio celeste:
este solo de oboé do século II.
PARA SER INSCRITO
NO MAUSOLÉU DA PRINCESA SHAI
O silêncio nunca dorme.
JUNTO À ALDEIA PERFUMADA
COM FLORES DE PESSEGUEIRO
“Ah!
foi tudo o que disse –
Monte Yoshino coberto de flores”.
(Teishitsu)
Sôin, à sombra do Monte Yoshino,
observa e ah!
o gafanhoto pula –
aroma fosforescente
cintila um instante.
Tão compenetrado Sôin,
não faz outra coisa durante o dia.
BASHÔ, NO MEIO DA NEVE,
CENSURA VERSOS QUE DEMONSTRAM
ARTESANATO EXCESSIVO
1.
Neve em Kyoto: o pinheiro vergado de nuvens.
O grou, em seu galho,
avista o ombro de Bashô.
Ombro vira galho.
2.
Neva na neve: Bashô vergado de neve.
A neve, sua brancura,
cai no grou
e no ombro de Bashô.
FOLHAS DE BAMBU: BAMBU PARA ONITSURA
No quintal de uma casa japonesa,
Onitsura se esforça
para encontrar a verdade.
Dez anos procurou as nuvens
que se molham no fundo do rio,
antes que as trutas saltem.
Quando desistiu,
Onitsura foi ao horto e ali se iluminou ao ver
as folhas de bambu:
peso do sol
as inclinava
às águas do chão
NOTURNO PARA A QUIETUDE DO PÁSSARO
PISANDO LAGO SECO
PRÓXIMO DE FOLHAS
Noite: cabelos molham a luz
suspensa
no lago
MAKOTO
(Verdade, sinceridade)
Faço uma linha: minha mão desaparece
se
toco
o
papel
WABI
(Solidão)
“Nossa vida no mundo é apenas um grande sonho”.
(Li Po)
O sol no pinheiro
um conta ao outro seu mistério
sem alterar a voz
SHIORI
(Delicadeza)
Buson escutou na Casa de Chá do Luar de Agosto,
que somente as obras sopradas pelo espírito são boas.
Com shi-i (visão própria),
Buson aprendeu que na maré vazante
águas flutuam conchas
sem medo
SATORI
Com o leque branco,
Hokushi
abana
carpas
no
lago
abafado
Alma de Hokushi:
o
leque
branco
* Estes poemas pertencem ao livro "O leque branco", de Fernando José Karl, a ser lançado brevemente pela editora paulista Lumme.
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