EM CASA DA FRANCISCA
Na solidão seca, sob o efeito do sereníssimo vinho do Porto e coberto com o silêncio aquoso da noite azeviche, o insano S., em êxtase, vocifera seu claro idioma de linho contra tudo o que seja fel e lepra.
S. que, na limpa e sempre enevoada vila de Torre Escura, e no velho sanatório de Santa Chuva, também é conhecido como Schopenhauer. Dizem os místicos que ele foi, em reencarnação passada, na biblioteca de Alexandria, o copista das obras raras do grego Kalicanthus. Considera-se que essa biblioteca tenha sido fundada no início do século 3 a.C.
Na vila de Torre Escura, destinada a ser o menor lugar do mundo, S. também escreveu um ensaio intitulado Hidráulica.
Outro dia a barca de Schopenhauer ancorou, com os velames mais rasgados do que nunca, no cais de pedra. A alma do velho filósofo estava frescamente perfumada pela verbena. Ao redor dele, gatos. Mexessem a cabeça os gatos e as árvores floresceriam todas ao mesmo tempo. Os mantras que, às vezes, S. pronuncia, colam-se à parede branca e ficam ali, manchas nupciais de música.
Diante desse muro branco escalavrado, à sombra dele, Schopenhauer adormece e sonha que está acordado no colo da Sibila – sonha que chove lá fora uma espécie de oiro velho – enquanto ela o acaricia com o ramo do mistério. E que mistério seria?
Em casa da Francisca, onde S. vai aos domingos, a biblioteca é escura e estreita, com gaiolas de canários e vasos de plantas; algumas estantes de pau preto acondicionam grossos fólios de convento e de foro, e até um anjo pode ser visto que observa, pela janela escancarada, o laranjal.
Sob a imensa curva deste céu, nesse primeiro dia do mundo – origo et fons – eu, Schopenhauer – passo os dedos pelos volumes da História genealógica, mas me detenho horas no Vocabulário, do muezim turco Sitar al-Camaã, depois rabisco numa das páginas desse livro o copo cheio de gérberas negras.
Aí, quando acordei, flagrei que os olhos límpidos e marinhos da sibila Lythia pulavam o muro.
Por vezes, o óbvio está errado e o insólito é verdadeiro.
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