Flauta sem boca à procura de música
ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço
na casa em que nasci tudo se doa sem cerimônia
da carne em nevralgia ao beijo na mão do carrasco
morde o verbo e trinca a sorte no próprio corpo
para não entregar o sacerdócio do útero a outra casa
para não comer o farnel das dores em outra mesa
sobretudo para não morder a escuridão antes do tempo
e erguer um sanatório na tessitura da pele
agarra com os dentes a música durante o sono
porque a telegrafia dos sons dorme no antigo
retrato familiar onde o mutismo irônico da face
revela o mutuário parentesco em moratória
e no sorriso ancestral mais uma música perdida
porque o silêncio pronuncia a afania da fraternidade
na minha cama o desejo messiânico sufoca
a passagem do dia e o reinado dos lençóis
na isquemia absoluta de qualquer hedonismo
reduz a imagem da valsa dos corpos
à paralisia do timbre de uma voz que não ouço
de um corpo congelado que não reencontro
de um sorriso sujo desenhado no algodão que toca a carne
de uma ilusão pregada nos olhos que não vejo
de um braço amputado que se debate numa tela de Modigliani
e que nunca foi pintado
na minha carne o desejo messiânico sufoca
a passagem dos anos e no vitral primitivo das horas
ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço
e tudo que nos resta ao final do dia são os olhares acusativos
daquelas antigas fotografias amarelecidas num álbum qualquer
e o silêncio da numerologia estampada nos túmulos
a soarem nos nossos ouvidos
flauta sem boca à procura de música.
Marco Vasques
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