quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Um dos textos de K. principia assim: “A língua inchada suja de livores de azoto e de crostas, no lábio seco de tanto fumar. A lavanda que sobe da roupa branca estendida na arca. Aproxima-se um dos assassinos, puxador do fumo louco, e seu nome é Jairo. Toca numa das franjas do manto do Homem Puro e diz: ‘A língua da deusa está morrendo. Vem e impõe nela as mãos para que ela respire’. Ainda balbucia gosmas de fala, quando chegam alguns e comunicam a Jairo a notícia árida: ‘A língua da deusa morreu. Por que perturbas ainda o Homem Puro?’ No sobrado verde, em Villa da Concha, essa língua: órgão muscular, musgoso, situado na cavidade bucal da deusa, é uma barata leprosa com caspa na sobrancelha ou carniça do sovaco da cárie. O Homem Puro, em surdina: ‘Não temas; crê somente’. Em torno e dentro do sobrado mulheres de saia florida e homens de chapéu negro choram e os punhos em faca clamando contra o céu. O Homem Puro ainda pergunta: ‘Por que este alvoroço e estas lágrimas? A língua da deusa não morreu, está envolta em sono.’ E descreve, com o dedo, um pequeno arco na têmpora da língua: ‘Língua deusa talitha cum’ --- o que significa: ‘Língua da deusa, eu te digo, cura-te’. A cárie leprosa com barata na sobrancelha não se curou – mas a língua da deusa, sim”.

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