sábado, 31 de maio de 2008
O banheiro da cervejaria Bürgerbräukeller – arruinado, sujo. Almas acossadas em cada recanto sombrio. O dono do bar não é o Esteves, aqui não é a Tabacaria, aquele que me fita da mesa ao fundo não é o Fernando Pessoa. Se não é o Fernando, quem é? É Jorge Luis Borges e solicita que eu leia um texto de sua autoria intitulado “A escrita do Deus”: “Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que me destinam os deuses. Com a profunda faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó”.
Que estou na treva, estou. Sem magia, não me levanto jamais do pó nem alcanço o copo de água. Sem magia eu não ressuscito nem pra beijar a boca da Ingrid, aquela safada. Minha alma – agora sei – foi vista pela última vez na página 72 de “O livro perdido de Tácito”. Acontece que, numa faxina aqui em casa, perdi “O livro perdido de Tácito” e só Deus sabe quando vou encontrá-lo de novo.
Por enquanto minha alma continua perdida e eu aproveito para seguir religiosamente o conselho do espanhol Pablo Picasso para uma vida perfeita: De manhã, missa; de tarde, touradas; à noite, bordel.
Escrevo, aqui na cervejaria Bürgerbräukeller, num guardanapo: “Deus morreu nos meus braços naquele sábado em que eu e Júlia nos amávamos no Calvário. A língua vai para onde quer, o espírito sopra onde quer, o Olho por onde espio o vento é o Olho por onde o vento me espia. Meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. ”
sexta-feira, 30 de maio de 2008
quinta-feira, 29 de maio de 2008
Vento quente no jardim da Casa de Água. Más valdría no haber nacido. Balofas nuvens: no undoso céu curvas imensas de cristal emanam dos eucaliptos e, se fumo erva-cidreira, me transmudo para um filme de Fellini, no exato instante daquele take de Amacord em que uma freira anã ajuda o louco de pedra a descer da árvore. Não sei se é o efeito do capim-cidreira, que clarifica e intensifica tudo a meu redor; também não sei se essas balofas nuvens algum dia existiram. Para me distrair, enquanto Lucana se espreguiça na banheira, eu leio Arkadii Dragomoshenko na varanda da Casa de Água, sorvo ostras com limão, crustáceos com salsa e coentro. Eu lendo a ode
quarta-feira, 28 de maio de 2008
Rotina de gueisha
Ao bater do meio-dia, a gueixa Yuki entrava na tina de Ofurô, a nudez dentro da tina, onde os perfumes derramados davam à água um tom cristalino de nada: depois uma carpa a penetrava, gozoza, de escamas macias, a carpa ia e vinha e friccionava as fendas da gueixa com o cerimonial de quem celebra um culto noturno; e embrulhada num céu que não tinha fim, a alma de Yuki --- céu de seda --- e, num dos recantos de seu mistério, a gueixa ondulava suavemente os quadris, dando aqui e além certo olhar ao jardim lá fora, entre árvores silenciosas – o jardim de pedra.
O resto da tarde, se havia luz que salpicasse as profundezas do horto, a gueixa Yuki passava lendo na Sala de Chá, e ali a mobília era de vime e os pequenos vasos de flores de cerejeira calavam cada mágoa, cada ira.
Um jardim de pedra; aí, quando nele estava, Yuki saboreava os escritos de O Livro do Vento, do poeta Syn Li. Enquanto iam sendo lidas as pequenas odes – a música na vitrola refrescava o ar –, e a gueixa agitava o leque e pensava na carpa, no céu, na seda.
terça-feira, 27 de maio de 2008
Gramofone e tear líqüido: a música paira
na nudez da luz (cujo exterior é o interior).
A jarra de porcelana, de suave gargalo,
só tem em si porcelana e favo oco com verbenas.
Um pouco de sombra a jarra esquece
sob nenhum vento na sala de jantar.
Encalham na pele fria da jarra
silêncios de chuva sem haver chuva.
Se alguém acariciasse o sono da jarra,
nunca a acordava do sono de não ser.
O sonho da jarra é sem água
(que a si própria dessedenta).
A jarra cansa da jarra, sugere o desconcerto:
solta os cabelos na nudez da hora
e, favo oco com verbenas, escuta a música e paira.
segunda-feira, 26 de maio de 2008
A piscina mostra seu abismo azul-claro, – um abismo, um belo abismo.
Nela mergulho mágoas, vísceras grudentas. Sem a vertigem eu seria um corvo a crocitar em ramagens e adágios. Hilda Hilst, quem diria, mora no quarto contíguo ao meu e me leva a toda parte, dormimos naquele banco do jardim, encharcados d’água desse chafariz fingido; sim, fingido, posto que aqui no Paraíso não há nada, apenas a mente quântica existe aqui e, agora, a tudo inventa, sem nuvens e ressentimentos. Pois este "agora" é o motivo particular e a sina. Se eu nunca mais morrer, como presumo, sobreviverei no nome desse ventilador que esparze folhas de calêndulas pelas peles cântaras. Sonhas, não? Hilda Hilst faz um gesto negativo:
– Agora, aqui no Paraíso, é que não sonho mais, meu querido. De manhã, é o próprio Deus que me acorda e o Pegasus trepa comigo na cama de chuva, onde trocamos carícias e fumamos a luz invencível.
Para sempre ressuscitado, Eu – Schopenhauer – aprendi que o sol é a sombra do sol e me recuso a molhar o gatos durante a chuva. Tenho outro ar agora: os olhos metidos para dentro vêem pensar o cérebro. Recito um poema para o Deus:
O SOL ESCURO
O homem do calabouço passeia sob o sol escuro:
--- Se o sol é a sombra de Buddha,
quem é Buddha, então?
Buddha vaticina:
--- Hoje mesmo os teus olhos iluminarão o sol.
O homem do calabouço argumenta:
--- Altamente concentrado no unilateral,
jamais serei claro.
Buddha diz ao homem do calabouço:
--- Em você é real e claro o que é invisível,
falante de uma fala que é da gramática só uma lasca.
sábado, 24 de maio de 2008
e nada é imagem
(teu corpo branco em mar de sargaços)
nada é miragem
na tela rútila das pálpebras.
de Carlos Drummond de Andrade
http://www.youtube.com/watch?v=18FkamLxzdg&feature=related
Sabei, ondas de sombra, arcos d'água, que sou barco em flor, estrela na ribanceira. A fúria minha, escuro miúra, vem de altos eucaliptos. A morte minha sonha com ribeiras. O vento torna curvos os eucaliptos que, de perfil, são anjos que ardem no campo. Desconcerta-se o diamante se, de repente, nos abandona para sempre a seiva da luz. Arde também o riso pelo campo, onde a morte sorve das ribeiras a tensão fluvial. À beira do sonho, como em desvario, deusas enxaguam cílios na tempestade, batem bongôs pelas ravinas as deusas: elas parecem nuvens no céu alto, lembrai que sois iguais a nuvens, iguais às deusas que esvoaçam rentes ao capinzal que ondula.